quarta-feira, 9 de abril de 2014

Histórias de Março

O homem parecia saído de um filme dos anos 30. Bigode fininho, cabelo curto atrás, impecavelmente penteado, cheio de brilhantina, com madeixa para a testa (agora que me recordo… um pouco ao estilo do Hitler) e ar de raposa.
O nome era Moreira, de profissão contínuo do meu Liceu (Gil Vicente) mas, ao que corria de boca em boca, e ao melhor estilo das secretas, agente/informador da PIDE/DGS.
Quando ele passava pelos corredores do Liceu era como se um vento gelado percorresse aquelas arcadas e todos se calavam com receio daquela figura tétrica.
O mais curioso é que o homem tentava socializar com a malta, tentando que ganhassem confiança com ele, o que era difícil.
Um dia, teria eu treze anos (1969 ou 1970), ia para casa depois das aulas, na conversa e brincadeira com colegas, quando nos deparámos com a rua bloqueada pela polícia por ter havido um grave acidente no Largo de Sapadores.
Estávamos nós a pensar como passar para apanhar o autocarro (o 35, que ia para o Areeiro), quando, por trás de nós, surgiu o Moreira que, piscando um olho e fazendo um sorriso malandro com aquele ar de raposa, nos perguntou se queríamos passar. Sem esperar resposta, dirigiu-se ao polícia que nos impedia a passagem, meteu a mão no bolso interior do casaco, tirou a carteira e, abrindo-a, mostrou qualquer coisa, que não vimos o que era, ao agente.
Aquele olhou atentamente, fez um arremedo de continência e desviou-se do caminho.
O Moreira chamou-nos, com um sorriso-como-quem-diz-quem-manda-aqui-sou-eu, e lá passámos pelo meio do acidente, armados em importantes…
Muitos anos mais tarde, já advogado, recebo no meu escritório um futuro cliente que tinha marcado consulta telefonicamente com a recepcionista, para tratar de uma questão de arrendamento.
Qual não é o meu espanto quando reconheço o Moreira. Ainda com o cabelo preto, cortado da mesma maneira, ainda com o bigode fininho à galã dos anos 30. Ainda com o mesmo ar de raposa.
Começo a atendê-lo, mas pela minha cabeça passavam todas as recordações do Liceu, das histórias que se contavam dele, da minha pessoal naquele dia em Sapadores e do fim da PIDE/DGS depois do 25 de Abril de 1974.
Talvez por me achar ausente o Moreira pergunta-me a certa altura: O doutor andou em que Liceu?
Perante esta pergunta respondi-lhe francamente: No Gil. E lembro-me muito bem de si, senhor Moreira.
Responde ele: Doutor, tudo o que se dizia de mim era mentira, nunca pertenci à PIDE.
Passámos à frente, tentando não me mostrar incomodado com as lembranças. Tomei conta e resolvi o assunto que me expôs.
Depois disso nunca mais o vi. Provavelmente já morreu ou terá à roda de 90 anos se for vivo.
Até hoje me arrependo de uma pergunta que ficou por fazer. Se não era da PIDE/DGS que raio de cartão mostrou ao polícia para este bater continência e nos deixar passar? O de contínuo do Liceu?

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