domingo, 27 de abril de 2014

Onde nada mais existe

Onde nada mais existe, existo eu,
Vazio, mantido por artérias e veias secas,
Onde outrora correu rio.
As epidérmicas margens desfolhando anos,
Sustendo a respiração dos átomos.
E sou pele e carne e ossos e sou muito mais do que isso,
Porque onde nada mais existe, na ausência que me rodeia,
Sítio de passagem para fantasmas 
Que me tocam e fenecem,

Existo eu.



Galáxia muda

As ruas estão desertas e as folhas esvoaçam pelo alcatrão em liberdade.
Nos passeios ecoam sons difusos, lembrando passos apressados que perderam razão de existir.
Nas janelas sem vidros murmuram cortinas esfarrapadas de dor sem olhos que espreitem.
O sol não aquece nenhum vento antes da lua que repousa pendurada nas árvores.
Não sinto o chão e os pulmões secaram com o fumo de dedos queimados de esgravatar sonhos.
Tudo se apaga lentamente e não sobra viv'alma que aprecie o meu partir.
Cumpro o destino e navego num mar largo e estranhamente chão sem horizontes que se toquem.
É este o meu mundo existindo onde nada mais existe.

domingo, 13 de abril de 2014

O beijo




O beijo - Edvard Munch
Andas por mim como se tudo fosse teu.
Andas não, flutuas, danças, ou sou eu que te vejo assim.
Então sorris.
Com aquele trejeito especial, arqueando os lábios.
Toda tu sorris.
Os teus olhos sorriem.
A tua pele sorri.
As minhas mãos sorriem no teu sorriso.
E nos teus lábios eu flutuo também.
Colado a ti.

Fevereiro 3, 2012 

quarta-feira, 9 de abril de 2014

Histórias de Março

O homem parecia saído de um filme dos anos 30. Bigode fininho, cabelo curto atrás, impecavelmente penteado, cheio de brilhantina, com madeixa para a testa (agora que me recordo… um pouco ao estilo do Hitler) e ar de raposa.
O nome era Moreira, de profissão contínuo do meu Liceu (Gil Vicente) mas, ao que corria de boca em boca, e ao melhor estilo das secretas, agente/informador da PIDE/DGS.
Quando ele passava pelos corredores do Liceu era como se um vento gelado percorresse aquelas arcadas e todos se calavam com receio daquela figura tétrica.
O mais curioso é que o homem tentava socializar com a malta, tentando que ganhassem confiança com ele, o que era difícil.
Um dia, teria eu treze anos (1969 ou 1970), ia para casa depois das aulas, na conversa e brincadeira com colegas, quando nos deparámos com a rua bloqueada pela polícia por ter havido um grave acidente no Largo de Sapadores.
Estávamos nós a pensar como passar para apanhar o autocarro (o 35, que ia para o Areeiro), quando, por trás de nós, surgiu o Moreira que, piscando um olho e fazendo um sorriso malandro com aquele ar de raposa, nos perguntou se queríamos passar. Sem esperar resposta, dirigiu-se ao polícia que nos impedia a passagem, meteu a mão no bolso interior do casaco, tirou a carteira e, abrindo-a, mostrou qualquer coisa, que não vimos o que era, ao agente.
Aquele olhou atentamente, fez um arremedo de continência e desviou-se do caminho.
O Moreira chamou-nos, com um sorriso-como-quem-diz-quem-manda-aqui-sou-eu, e lá passámos pelo meio do acidente, armados em importantes…
Muitos anos mais tarde, já advogado, recebo no meu escritório um futuro cliente que tinha marcado consulta telefonicamente com a recepcionista, para tratar de uma questão de arrendamento.
Qual não é o meu espanto quando reconheço o Moreira. Ainda com o cabelo preto, cortado da mesma maneira, ainda com o bigode fininho à galã dos anos 30. Ainda com o mesmo ar de raposa.
Começo a atendê-lo, mas pela minha cabeça passavam todas as recordações do Liceu, das histórias que se contavam dele, da minha pessoal naquele dia em Sapadores e do fim da PIDE/DGS depois do 25 de Abril de 1974.
Talvez por me achar ausente o Moreira pergunta-me a certa altura: O doutor andou em que Liceu?
Perante esta pergunta respondi-lhe francamente: No Gil. E lembro-me muito bem de si, senhor Moreira.
Responde ele: Doutor, tudo o que se dizia de mim era mentira, nunca pertenci à PIDE.
Passámos à frente, tentando não me mostrar incomodado com as lembranças. Tomei conta e resolvi o assunto que me expôs.
Depois disso nunca mais o vi. Provavelmente já morreu ou terá à roda de 90 anos se for vivo.
Até hoje me arrependo de uma pergunta que ficou por fazer. Se não era da PIDE/DGS que raio de cartão mostrou ao polícia para este bater continência e nos deixar passar? O de contínuo do Liceu?

sexta-feira, 4 de abril de 2014

Busque Amor novas artes... (Camões)

Busque Amor novas artes, novo engenho 
Para matar-me, e novas esquivanças; 
Que não pode tirar-me as esperanças, 
Que mal me tirará o que eu não tenho. 

Olhai de que esperanças me mantenho! 
Vede que perigosas seguranças! 
Pois não temo contrastes nem mudanças, 
Andando em bravo mar, perdido o lenho. 

Mas conquanto não pode haver desgosto 
Onde esperança falta, lá me esconde 
Amor um mal, que mata e não se vê. 

Que dias há que na alma me tem posto 
Um não sei quê, que nasce não sei onde; 
Vem não sei como; e dói não sei porquê. 

Luís Vaz de Camões

quarta-feira, 2 de abril de 2014

Everybody Knows This is Nowhere

Quantas formas de morte existem?
Ressurgimos da improbabilidade
Renascemos da dúvida
Pedaços perdidos de infinito
Movendo-nos no meio de uma guerra de galáxias
Para chegar a lugar nenhum