sábado, 28 de fevereiro de 2015

Recriação



É fácil apagar as montanhas!
Assim como é fácil apagar as estrelas, os planetas, tudo o que existe e que eles contêm, tudo o que mexe ou está imóvel.
Tudo o que respira e vive, ou tudo o que apenas “está” e é indiferente e não quer saber quem eu sou.
Tudo o que muda e está em mudança ou aquilo que é imutável.
É fácil, extremamente fácil, apagar tudo.
As montanhas e a urze gelada que as cobre, as estrelas e as suas variegadas luzes de milhares de milhões de anos, os planetas e as suas diferentes atmosferas, os animais e as rochas.
Muito fácil.
Sou eu dentro de mim. Em silêncio, obscuro.
No entanto, depois de tudo apagar, fecho os olhos e assaltas-me, viva, luminosa, melodiosa, retirando-me o silêncio e a escuridão.
E recrias, lentamente, a criação.




sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

Dança






Flutuas na brisa
ou danças, não sei.
Porque és apenas movimento
e nunca te vi dançar.
Mas vejo-te pisar o céu
onde as aves se afastam 
reverentes obedientes
no espaço que é só teu.
E voas
ou danças, não sei.
Porque és ondulação
e nunca te vi dançar.





Âncora

Vem
segura a minha mão
Será sempre a âncora 
quando cansada quiseres aportar
Guia-te pelas estrelas
pelo reflexo lunar
pelo sal e sargaço
que traçam sem desvio
o teu caminho no mar
Segura a minha mão
Há barcos ao longe, vês?
De velas rasgadas
pouco a pouco a afundar
Não percas o rumo
há terra à vista
é só confiar
Vem
estás perto, muito perto
de me poder encontrar.



quinta-feira, 26 de fevereiro de 2015

Hesito...

Hesito.
(D)escrever-te ou desenhar-te?
As letras vão formando as palavras
Os traços a tua forma
E o que escrevo desenha-te
E o que desenho (d)escreve-te
Tento visualizar o poema
Tento declamar o desenho
Misturo letras e riscos
Criando uma forma etérea
Translúcida
Holograma onde pertenço
Os fonemas levemente visualizados
Sussurram
Os rabiscos vocalizados suavemente
Murmuram
Hesito.
Faltam as tintas para te colorir
Na tela que é tua.
Falta a melodia para te cantar
No palco que é meu.
Perco-me
Hesito.
Talvez te leia.




NA 6ª PRATELEIRA A CONTAR DO CHÃO


De repente vieste tornado
arrasando o leito imóvel das noites
Desprevenido afoguei-me no teu abraço
Procurei o tesouro que escondeste para mim
sorrindo
na 6ª prateleira a contar do chão
Depois permaneceu constante
o segredo que reside nesse mistério
de uma brisa com o teu nome
soprando irrequieta
num canto enorme do meu coração



Borboleta colorida

Há mantras e mandalas entoados e desenhados
no leito dos pássaros esvoaçando nas correntes
amanhecidas.
Há sentido no encanto
das palavras fugitivas
viajando sorrateiras pelos campos
com borboletas coloridas e frágeis
na ponta da minha língua passeando
(pelo teu corpo)
sem saber da metronómica do espanto.
Há tudo isso a cada passo
pois a tua imagem tranquila
é refúgio é porto
onde descanso e completo me refaço



quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Não digas nada

Não digas nada, não precisas de dizer nada.
Eu sou o silêncio que vestes e te despe,
o ruído que perturba os teus braços.
Lentamente derrubo o asfalto 
que teima em enfeitar janelas enegrecidas, 
numa morte trágica para quem nunca foi vivo.
O vidro estilhaçado
corta a raiz mais funda do que pensou um dia.
Não digas nada, não precisas de dizer nada.
Eu sou o silêncio e aguardo a lua
para lavar de prata as feridas que teimam em nascer
sem cordão umbilical.
As cúmplices pedras da calçada
entoam cânticos que acreditam mágicos,
suplicando amor dos pés que desconhecem o caminho.
Não digas nada, não precisas de dizer nada.
Eu sou o silêncio feito espanto,
que nos teus olhos, num momento,
forma líquidas as estrelas na luta das galáxias.
Não digas nada, não precisas de dizer nada.
Eu sou apenas o silêncio
incapaz de imaginar que não existes.



terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Aprisionado

Há uma estátua estática
majestática
por quem o tempo não passa
os braços erguidos perdidos no espaço
Nesta estátua
ninguém vê nem sente
que apesar de estática
seguramente majestática
há uma lágrima a rolar
presa no tempo
um coração inaudível
que pulsa e vibra.
E o sangue flui
no mármore ígneo.
E a lágrima rola
descontrolada.
Há uma estátua estática
já pouco majestática
aprisionada em mim.




segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Uma história que hei-de um dia contar

A maresia desenhava o cheiro das ondas que de mansinho teciam colares de conchas que, quem sabe, poderiam ser o adorno do teu peito.

O sol, esse, dormia na cama das nuvens, cinzentas como a manhã.

Se não fosses tu, e os acordes do concerto que ainda saltavam nas minhas mãos, o mar teria uma profundidade maior, um abismo irrequieto assim tornado uma súbita calmaria.

Os meus lábios, estranhamente ainda doces dos teus, esforçavam-se a recitar qualquer coisa que recordavam e não me deram a conhecer.

Ali, era só eu, egoísta no meu mundo.


Tu, tu és outra história que hei-de um dia contar.


Praia da dos Pescadores - Parede, Estoril



Demónios e deuses

As paredes estão lá,
Cercam-me.
Há demos onde não há deuses,
nada é neutro, 
nada é opaco.
E tu
Mais do que tudo
és transparente.
Da transparência
que se invoca na doçura
como só ao que é doce
se exige e pode ser.
E eu
mais do que nada,
translúcido,
de uma loucura aparente,
exijo aos meus olhos
se fechem
dentro dos teus,
apenas um instante,
numa dança
que dure a eternidade.




Tsunami



Sou cais, 
Em que muitas águas se recostam
abraçando as ondas violentas 
coladas na pele nua do vento.
Há um vórtice, vértice, inerte,
no voo secreto da gaivota muda e inquieta,
nas mãos que perdidas se tocam
beijando o outro lado do tempo,
dizendo "estou aqui e não posso ser o que não sou"
mesmo que o barco perca o caminho.
A saudade, essa, é sempre um destino.
Sou cais,
sou o que sou,
sem medo dos temporais.





domingo, 22 de fevereiro de 2015

Inesperados


I.

Secretamente esperamos o inesperado. Um contra-senso. Um absurdo.
É nesta contradição que nos revemos.
Mas eu não te esperei. E assim inesperada pulaste de um lado para o outro dentro de mim.


II.

Deixa-me ver as marcas da tua dor...
Passar suavemente a ponta dos meus dedos, quem sabe a língua, pelas cicatrizes na tua pele.
Dores e marcas todos temos. Mas nem todos temos as mãos que as acolhem.
Ri-te. 
O teu sorriso deixa prenhe o dia que concebe a noite ideal para te amar.


III.

Sendo assim, visito as árvores, lá no topo 
onde o sol é mais forte e luminoso.
Há uma brisa que passa pelos ramos, 
água num regato das alturas.
Nesse rumor de água e vento, juntam-se vozes que não conheço.
Talvez sejas tu o tronco por onde subi,
onde arranhei os meus braços,
lugar onde confundi o meu sangue na tua seiva.
Há fruto a nascer em mim. Há flor a fecundar em ti.
E fico quietinho à espera do sabor do teu corpo.


IV.

Olhar para ti. Como se te conhecesse sem nunca ter conhecido.
Os dedos desajeitados no toque do cabelo macio.
Desconfiado da ternura que te cobre como agasalho
e a mim torna em recordação o agreste inverno.
Falaste e disseste
- “abraço peito com peito, daqueles em que se dá parte do coração” -
Sorri, como penso que querias que eu tivesse sorrido.
Miríades de luminosas e transcendentes estrelas emudecem
enquanto passa de ti para mim lentamente
e recebo a parte que me dás.




quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Êxtase



Gostava de ter uma história para contar.
E foi assim que os meus dedos, 
ensandecidos, 
percorreram lentamente a penugem da tua pele.
Circundaram a rotunda auréola,
ameia desse castelo conquistado
onde os meus lábios permaneceram 
até avistar o pôr do sol
ofegante.
Nos teus olhos semicerrados faiscavam
pedaços de estrelas
nos trejeitos da tua boca
o murmúrio distante da selva
ecoava.
Depois,
depois, apenas um compasso 
desenhando a espera.
Num último fôlego
caio em prece 
no altar herege do teu corpo,
igreja espástica.
Seja lá qual for o teu destino,
leva-me contigo.



terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Túmulo ao poeta desconhecido

Lamento.
Todas as horas, dias e semanas.
Lamento o ar e o vento, o mar e as ondas,
O céu e o sol, a terra e o magma.
Lamento o voo das aves, o rastejar dos répteis, 
A neve e a montanha, as mãos e o corpo,
O amor e a indiferença.
Lamento o nascimento e a morte,
As multidões e o vazio.
Lamento o respirar, os pulmões negros de fumo,
A boca e os lábios.
Lamento o próprio lamento.
Porque é o ar e o vento, o mar e as ondas, 
O céu e o sol, a terra e o magma, 
As aves que se arrastam e o répteis que voam,
A neve que gela a montanha, as mãos e o corpo,
Que nos abraçam de lábios e boca,
Suaves e doces.
Quando deixas de escrever,
Quando um poeta morre, 
Para onde vai a poesia? 

domingo, 1 de fevereiro de 2015

Esta é para ti

Hoje escrevo para ti.
Pois é, tantas vezes dizem que escrevo para ti, 
como se para mim tivesses a importância transcendente de uma estrela
e tudo girasse à tua volta. 
Pelo menos “pensam” que eu me movimento em translação
onde paira a tua petulante e falsa intelectualidade.
Como se tudo na minha vida se reduzisse a ti. 
Mas hoje escrevo para ti. 
Para satisfazer a curiosa vontade de quem repete que escrevo para ti, 
como se só existisse a tua pele. 
E não é verdade, acreditem. 
Na verdade hoje escrevo, também, para te agradecer, já que foste apenas
um breve trecho numa história mais longa e com personagens
mais importantes que me fizeste recordar.
Agradeço-te para não esquecer que quem amei e se cruzou comigo
não atormenta nem assombra o meu futuro. 
Porque tive sorte. A sorte de uma vida cheia de seres extraordinários, 
humanos e não humanos, que, por uma ou outra razão, 
apenas tiveram de partir antes de mim.
E tu, que não fazes parte desse rol, não ficarás na memória 
da minha eternidade.
Hoje escrevo para ti. Especialmente para ti. 
Porque não tenho fantasmas.
E porque a fragilidade das palavras, por vezes,
não suporta a obesidade da vida.